A MISERICÓRDIA DE DEUS É REALMENTE ILIMITADA OU ESTAMOS NOS ENGANANDO?
Primeira Leitura: Eclesiástico 5,1-10
Salmo Responsorial: Sl 1,1-4.6
Evangelho: Marcos 9,41-50
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Muitas pessoas se confortam com a ideia de que, independentemente do que façam, Deus sempre as perdoará. É um pensamento que justifica a procrastinação do arrependimento, a indulgência no pecado e a suposição de que a misericórdia divina vem sem condições. A frase “Deus me perdoará, não importa o que eu faça” é repetida como se fosse uma brecha na justiça divina, uma forma de viver irresponsavelmente enquanto se mantém o Céu como um plano de fuga. Essa atitude se manifesta em diversas áreas da vida. Quantas vezes as pessoas se aproveitam da bondade alheia, presumindo que sempre serão perdoadas? Quantos relacionamentos são destruídos porque uma parte continua ferindo a outra, acreditando que um simples pedido de desculpas basta sem uma mudança real? A misericórdia tem o propósito de restaurar, mas quando é abusada, torna-se um pretexto para a acomodação e o senso de direito absoluto.
A Primeira Leitura, do livro do Eclesiástico (5,1-8), confronta essa presunção perigosa. Ela começa com um alerta: “Não confies em tuas riquezas, nem digas: ‘Basta-me tudo isso.’ Não te deixes levar pelos instintos e pela força de teus desejos.” O autor expõe a arrogância daqueles que se sentem seguros em seu pecado, presumindo que sempre haverá tempo para mudar. O conceito hebraico presente aqui é “חֶסֶד” (ḥesed), que significa “misericórdia” ou “amor leal”. No entanto, no pensamento judaico, ḥesed está sempre ligado à fidelidade à aliança; não é um passe livre para pecar, mas um relacionamento que exige resposta. O Eclesiástico deixa isso claro: “Não digas: ‘Pequei, e que de mal me aconteceu?’ Porque o Senhor é paciente.” Essa passagem denuncia a falsa segurança daqueles que pecam sem consequências aparentes e assumem que a paciência de Deus significa indiferença. Mas o texto continua: “Não tardes em voltar para o Senhor, não adiando de dia para dia, pois de repente virá contra ti a ira de Deus.” O mesmo Deus que manifesta ḥesed é também um Deus de “דִּין” (din), ou seja, justiça e juízo. A misericórdia é real, mas não está separada da responsabilidade.
Essa tensão entre misericórdia e justiça é aprofundada no Salmo Responsorial (Sl 1,1-4.6), que contrasta o destino dos justos e dos ímpios. O salmista declara: “Feliz é aquele que não segue o conselho dos ímpios… mas se compraz na lei do Senhor.” É fácil pensar que, por Deus ser misericordioso, Ele ignora o pecado, mas este salmo faz uma distinção. Aquele que verdadeiramente ama a Deus segue Sua lei, não por medo, mas por amor e reverência. Os ímpios, por outro lado, são “como a palha que o vento dispersa.” Podem parecer seguros por um tempo, mas, no final, seu caminho leva à destruição. O termo hebraico “רָשָׁע” (rasha’), que significa “ímpio” ou “culpado”, é usado ao longo do Antigo Testamento para descrever aqueles que presumem sobre a misericórdia de Deus sem verdadeira obediência. Essa é uma advertência direta contra aqueles que dizem: “Deus me perdoará de qualquer forma,” enquanto continuam vivendo de maneira que O ofende.
Jesus enfrenta essa falsa sensação de segurança no Evangelho (Mc 9,41-50) com algumas de Suas palavras mais fortes sobre o pecado e suas consequências. Ele declara: “Se tua mão te leva a pecar, corta-a… é melhor entrar na vida mutilado do que ter as duas mãos e ir para a Geena.” Aos ouvidos modernos, isso pode parecer extremo, mas Jesus usa imagens poderosas para enfatizar uma verdade: o pecado é mortal, e a misericórdia não é um pretexto para permanecer nele. O termo grego “ἄφεσις” (aphesis), que significa “perdão” ou “libertação”, é usado no Novo Testamento para descrever a misericórdia de Deus. No entanto, aphesis não significa apenas perdão no sentido jurídico; implica uma libertação total do poder do pecado. O verdadeiro perdão não é apenas Deus ignorando o pecado, mas libertando o pecador de seu domínio.
O problema é que muitos não querem ser libertos do pecado; querem apenas ser desculpados por ele. Por isso, Jesus adverte contra causar escândalo e insiste em medidas radicais para evitar o pecado. Sua referência à Geena, o lugar de punição, é uma resposta direta para aqueles que assumem que a misericórdia é automática. No tempo de Jesus, a Geena era o vale fora de Jerusalém onde o lixo e os cadáveres eram queimados — um símbolo forte de destruição espiritual. Jesus não nega a misericórdia de Deus, mas enfatiza que a recusa em se arrepender traz consequências. Seu chamado para “cortar” aquilo que leva ao pecado não é sobre automutilação, mas sobre um arrependimento sério. Significa remover qualquer coisa — relacionamentos, hábitos, desejos — que mantém uma pessoa presa ao pecado. A mensagem do Evangelho não é sobre um Deus que se recusa a perdoar, mas sobre um Deus que se recusa a deixar as pessoas enganarem a si mesmas, achando que podem explorar Sua misericórdia.
A lição aqui é profundamente prática. Muitas pessoas assumem que terão tempo para se arrepender mais tarde, mas nem o Eclesiástico nem Jesus permitem essa ilusão. A misericórdia de Deus é ilimitada para aqueles que verdadeiramente a buscam, mas não é um escudo para aqueles que deliberadamente persistem no erro. Isso é especialmente relevante em um mundo que normaliza o pecado enquanto espera aceitação incondicional. Muitos usam a misericórdia como um argumento para permissividade moral, mas a visão bíblica da misericórdia é um chamado à transformação, não à tolerância do pecado.
Essa mensagem também tem um forte impacto pessoal. As pessoas muitas vezes se enganam, pensando que, desde que “se sintam próximas de Deus,” podem viver como quiserem. Mas fé sem obediência é autoilusão. O pecado endurece o coração, tornando o arrependimento mais difícil com o tempo. Por isso, o Eclesiástico adverte contra adiar a conversão — quanto mais tempo alguém permanece no pecado, mais difícil se torna sair dele. Da mesma forma, as palavras radicais de Jesus sobre cortar as ocasiões de pecado lembram os fiéis de que algumas coisas devem ser sacrificadas pelo bem da salvação. Seja o orgulho, os relacionamentos, os hábitos ou as ambições, qualquer coisa que separa alguém de Deus não vale a pena ser mantida.
Então, a misericórdia de Deus é realmente ilimitada? Sim, mas não é barata. Ela exige uma resposta. Aqueles que acreditam que podem viver como quiserem e ainda receber o perdão sem arrependimento estão se enganando. Deus não nega Sua misericórdia, mas também não a impõe a quem não a deseja verdadeiramente. A escolha sempre estará diante de nós: permanecer no pecado esperando uma misericórdia que não buscamos, ou nos arrependermos verdadeiramente e recebermos uma misericórdia que não apenas perdoa, mas transforma. O aviso de Jesus é claro: leve o pecado a sério ou corra o risco de perder tudo. Aqueles que abusam da misericórdia de Deus hoje podem um dia se apresentar diante d’Ele e perceber, tarde demais, que o que presumiram possuir nunca lhes pertenceu para ser manipulado.
Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)
Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
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