Deus Não Se Impressiona com Suas Cinzas
Primeira Leitura: Joel 2,12-18
Salmo Responsorial: Sl 50(51),3-6.12-14.17
Segunda Leitura: 2 Coríntios 5,20-6,2
Evangelho: Mateus 6,1-6.16-18
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Há algo inquietante sobre a Quarta-feira de Cinzas. As igrejas ficarão cheias, longas filas se formarão, e pessoas que não frequentam a Missa há meses aparecerão de repente para receber as cinzas. Muitos usarão com orgulho a cruz na testa, tirarão selfies e seguirão com seu dia como se nada tivesse mudado. Alguns até postarão suas cinzas nas redes sociais, como se marcar-se com pó fosse um feito de santidade. Mas aqui está a verdade dura: Deus não se impressiona com suas cinzas. A marca das cinzas é um símbolo de arrependimento, não um distintivo de justiça. E, no entanto, ano após ano, muitos recebem as cinzas sem a menor intenção de mudar seus caminhos. Eles passam pelos rituais sagrados, enquanto seus corações permanecem endurecidos, sem vontade de voltar-se para Deus. Se as cinzas que você recebe hoje não passam de um sinal externo, sem conversão interior, você está apenas participando de um espetáculo religioso vazio. E Deus detesta a hipocrisia – esta é a lição que as leituras de hoje nos ensinam ao iniciarmos este tempo sagrado da Quaresma.
A palavra “Quaresma” vem do latim “Quadragesima”, que significa “quadragésimo”, referindo-se aos quarenta dias de preparação espiritual antes da Páscoa. Essa etimologia destaca a ênfase na penitência, disciplina e conversão ao longo deste período sagrado. A Quaresma não é apenas um tempo de reflexão simbólica, mas um chamado à purificação e renovação interior. Esse conceito está profundamente enraizado na tradição bíblica, refletindo grandes períodos de provação e renovação: Moisés jejuando no Monte Sinai (Êxodo 34:28), a jornada de Elias para encontrar Deus (1 Reis 19:8) e, mais profundamente, os quarenta dias de Cristo no deserto (Mateus 4:2). No entanto, muitos hoje tratam a Quaresma como uma mera temporada cultural – um tempo para deixar de comer chocolate, reduzir o uso das redes sociais ou fazer pequenas mudanças de estilo de vida, ignorando seu significado mais profundo. A Quaresma é sobre conversão, purificação e reconciliação com Deus. A Igreja não nos chama a quarenta dias de renúncia superficial, mas a uma mudança radical de coração. As cinzas em nossas testas hoje nos lembram que somos pó, mas também servem como um alerta: se não nos voltarmos verdadeiramente para Deus, nossas vidas permanecerão estéreis, como cinzas secas espalhadas ao vento.
A Primeira Leitura (Joel 2:12-18) clama pelo retorno a Deus – não um retorno superficial e performático, mas um retorno real, doloroso e humilde. O profeta Joel usa a palavra hebraica “שׁוּב” (shuv), que significa “retornar, voltar atrás”. Não é uma ação física qualquer; significa uma reviravolta completa, uma transformação radical do coração. Quando Joel clama: “Voltai para Mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e lamentações”, ele exige mais do que participação religiosa – ele pede uma revolução na alma. Muitos hoje receberão as cinzas e continuarão nos mesmos pecados, acreditando que aparecer na igreja uma vez por ano para este rito é suficiente. Mas “shuv” não é sobre “aparecer”; é sobre abandonar o pecado, o orgulho e a autossuficiência, e correr de volta para a misericórdia de Deus. Joel continua: “Rasgai o vosso coração e não as vossas vestes” – um ataque direto contra aqueles que pensam que exibições externas de religião têm algum valor sem mudança interior. Quantos hoje usarão as cinzas, mas se recusarão a confessar seus pecados? Quantos ostentarão sua piedade, mas continuarão em sua desonestidade, imoralidade ou falta de perdão? Se não houver “shuv”, nenhuma volta real para Deus, então as cinzas em sua testa são tão insignificantes quanto o pó no chão.
O Salmo Responsorial (Salmo 50/51) ecoa este mesmo chamado, mas o aprofunda ainda mais. O salmista não pede apenas uma purificação exterior; ele suplica por algo radical: “Criai em mim um coração puro, ó Deus” (בְּרָא־לִי לֵב טָהוֹר – berah li lev tahor). A palavra hebraica “בָּרָא” (bara) significa “criar”, e é a mesma usada em Gênesis quando Deus criou o mundo do nada. O salmista não está pedindo uma pequena correção; ele está implorando por uma recriação total de seu coração. Isso é arrependimento verdadeiro – não um ajuste leve, não um momento de culpa, mas um desejo profundo de que Deus transforme completamente a alma. Este salmo expõe a verdade: Deus não se importa com nossos atos religiosos externos se nossos corações permanecem os mesmos. Ele não se agrada de sacrifícios vazios, rituais sem sentido ou pessoas que usam cinzas enquanto vivem em rebeldia contra Ele. Se não houver “bara”, nenhuma criação de um novo coração, então as cinzas não passam de um teatro religioso.
Na Segunda Leitura (2 Coríntios 5,20-6:2), São Paulo suplica: “Reconciliai-vos com Deus!” Ele usa a palavra grega “καταλλάσσω” (katallássō), que significa “trocar hostilidade por amizade, fazer as pazes”. Isso não é um pequeno ajuste; é uma mudança total no relacionamento. Muitas pessoas usam cinzas como uma tradição religiosa, mas seu relacionamento com Deus continua distante, até mesmo hostil. Elas se recusam a perdoar os outros, agarram-se aos seus pecados, continuam vivendo como se Deus fosse uma figura distante, em vez do Senhor de suas vidas. Paulo as adverte: “Agora é o tempo favorável, agora é o dia da salvação.” Não amanhã. Não quando você se sentir pronto. Não quando a vida estiver mais tranquila. Agora! Muitos católicos convenceram-se de que terão tempo para acertar as coisas com Deus mais tarde. Mas e se não houver um “mais tarde”? E se hoje for sua última chance de “katallássō”, de se reconciliar verdadeiramente com Deus? Quantas pessoas morrerão com cinzas na testa, mas sem arrependimento no coração?
O Evangelho (Mateus 6:1-6, 16-18) expõe talvez o mais perigoso engano espiritual de todos – a piedade performática. Jesus adverte contra “agir com justiça diante dos outros para serem vistos por eles.” Ele usa a palavra grega “ὑποκριτής” (hypokritēs) – a mesma usada para “atores” no teatro grego antigo. Jesus está dizendo: “Não sejam atores religiosos. Não façam um espetáculo.” No entanto, hoje, muitos farão exatamente isso. Usarão cinzas como uma demonstração pública, mas continuarão em seus maus caminhos. Postarão fotos de suas testas marcadas nas redes sociais, mas não rezarão em segredo. Andarão pelas ruas com cinzas, mas se recusarão a mostrar misericórdia, humildade ou obediência a Deus. O aviso de Jesus é claro: Se você jejua, reza ou dá esmolas para ser visto pelos outros, já recebeu sua recompensa – que é a admiração humana. Mas de Deus, não receberá nada. Aqueles que tratam a Quarta-feira de Cinzas como uma encenação não estão impressionando Deus – estão apenas interpretando o papel de um “ator” religioso (hipócrita), enquanto sua alma permanece inalterada.
Caros irmãos em Cristo, essa realidade deve nos inquietar. Ir à Missa uma vez por ano para receber cinzas não o torna justo diante de Deus. Receber cinzas na testa sem um arrependimento genuíno não impressiona Deus. O que importa não é a marca exterior, mas a mudança interior. Se hoje você receber as cinzas, que seja um momento de arrependimento verdadeiro. Vá se confessar. Reconciliem-se com aqueles que vocês feriram. Libertem-se do pecado habitual. Ajudem os pobres. Rezem com sinceridade. Jejuem, não para chamar atenção, mas para uma renovação espiritual. Não permitam que sua fé seja uma atuação vazia. Deus não se importa com quão visíveis estão suas cinzas, Ele se importa se o seu coração verdadeiramente pertence a Ele.
Muitas pessoas hoje se recusarão a ouvir esta mensagem. Dirão: “Pelo menos eu fui à igreja!” Mas isso é suficiente? Você acha que Deus se deixa enganar pela participação religiosa sem arrependimento verdadeiro? A Igreja está cheia de batizados que vivem como ateus práticos – usando os símbolos externos da fé, mas rejeitando suas exigências. É por isso que a Igreja perde credibilidade em muitas partes do mundo, porque tantos fingem ser cristãos sem realmente seguir a Cristo. O mundo não precisa de mais atores religiosos ou performers; ele precisa de discípulos verdadeiros, que passaram pelo “shuv” (retorno a Deus), “bara” (criação de um coração novo), “katallássō” (reconciliação verdadeira) e abandonaram a hipocrisia.
Caros irmãos e irmãs em Cristo, nossa vivência da fé não pode ser um espetáculo vazio. Receber as cinzas sem conversão de coração é inútil aos olhos de Deus. A verdadeira Quaresma nos convida à mudança, ao arrependimento e ao compromisso com o Evangelho. Mas essa conversão não pode ser apenas individual; ela precisa tocar nossas relações com os outros e com o mundo. A Campanha da Fraternidade 2025 nos recorda que a fé se manifesta na vivência da fraternidade e na busca de um mundo mais justo e solidário. Não basta parecer religioso, é preciso agir com justiça e misericórdia. Assim como as cinzas simbolizam nossa fragilidade e necessidade de Deus, elas também devem nos impulsionar a ser sinais concretos do amor de Cristo no mundo. Somos chamados a transformar nossa fé em gestos concretos de solidariedade, diálogo e reconciliação.
Se hoje recebemos as cinzas, que elas sejam um ponto de partida para uma mudança real. Que nossa conversão não fique apenas na aparência, mas se traduza em atitudes de fraternidade, cuidado com os mais pobres, defesa da dignidade humana e compromisso com a justiça. Não basta usar cinzas na testa, é preciso carregar a cruz de Cristo na vida diária, amando como Ele amou. Que este tempo quaresmal nos ajude a viver uma fé autêntica, marcada pelo amor a Deus e ao próximo, para que possamos, um dia, celebrar com alegria a vitória da Ressurreição.
Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)
Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
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