VOZ DO LOGOS (17): REFLEXÃO/HOMILIA PARA O PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA, ANO C

O Diabo Está Te Oferecendo um Atalho?

Primeira Leitura: Deuteronômio 26,4-10
Salmo Responsorial: Salmo 90(91),1-2,10-15
Segunda Leitura: Romanos 10,8-13
Evangelho: Lucas 4,1-13
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E se as maiores tentações da vida não fossem um convite para pecados evidentes, mas para atalhos sutis? E se a oferta mais perigosa do diabo não fosse um mal óbvio, mas uma alternativa mais conveniente ao plano de Deus? O mundo hoje é construído sobre atalhos – esquemas para riqueza rápida, promoções obtidas por meios escusos, prazeres fáceis, fé comprometida. A sociedade recompensa aqueles que encontram o caminho mais rápido para o sucesso, independentemente do custo. Pessoas trapaceiam para subir na vida, líderes manipulam o poder para controle, igrejas diluem a doutrina para permanecerem populares. Mas a pergunta é: a que preço? Nos relacionamentos, muitos trocam o trabalho árduo do compromisso pelo prazer momentâneo – levando a lares destruídos, confiança perdida e arrependimento. No campo profissional, alguns comprometem sua integridade por promoções rápidas, vendendo suas almas por status. Até mesmo na fé, muitos esperam bênçãos instantâneas sem sacrifício, tratando Deus como uma máquina de vender favores, e não como Senhor soberano. Estas não são apenas fraquezas humanas; são tentações manipuladas pelo próprio diabo, atraindo as pessoas para uma versão falsa da vontade de Deus – uma vontade que promete sucesso sem sofrimento, fé sem resistência, glória sem a cruz.

O Primeiro Domingo da Quaresma nos obriga a enfrentar essa realidade desconfortável. As leituras de hoje revelam como o diabo sempre trabalhou, enganando as pessoas com a ilusão de controle, a falsa promessa de segurança e a mentira da gratificação imediata.

Começando pela Primeira Leitura (Deuteronômio 26,4-10), somos lembrados do longo caminho da salvação. Israel esteve escravizado no Egito por séculos, clamando a Deus por libertação. Quando Deus finalmente age, Ele o faz “com mão poderosa” (יָד חֲזָקָה, yād ḥăzāqâ) – uma expressão usada para descrever a intervenção poderosa e muitas vezes dolorosa de Deus na história. O Sitz im Leben (contexto de vida) desse texto é Israel à beira da Terra Prometida, olhando para trás e vendo como Deus não tomou atalhos para salvá-los. Ele os conduziu pelas pragas, pelo Mar Vermelho, pelo deserto, pelas provações, moldando-os como um povo de fé. A palavra hebraica “ḥăzāqâ” (חֲזָקָה, poderoso/forte) significa não apenas poder, mas um aperto firme – um que se recusa a soltar, mesmo quando o caminho é difícil. Isso contrasta fortemente com a tentação de abandonar o processo, de procurar um caminho mais curto para a vitória. Mas a mão de Deus não é uma mão de atalhos; é uma mão de formação, disciplina e redenção.

Em consonância, o Salmo Responsorial (Sl 91), que promete proteção divina, é exatamente a Escritura que Satanás manipula para tentar Jesus. O salmista declara que Deus ordenará que Seus anjos protejam os fiéis, e ainda assim Jesus recusa-se a usar essa promessa para forçar um milagre. A palavra hebraica “sākak” (סָכַךְ, cobrir/proteger) no Salmo 91:4 transmite a presença protetora de Deus, mas não como um instrumento para ser testado. Os israelitas, durante sua jornada, frequentemente testavam Deus, esperando alívio imediato da fome, sede ou perigo, em vez de confiar no Seu tempo. Aqui é onde entram os atalhos: esperar a ajuda de Deus nos nossos próprios termos, em vez de nos rendermos ao Seu processo. O diabo oferece a Jesus uma oportunidade de provar as promessas de Deus agora mesmo – mas a verdadeira fé espera, mesmo quando a proteção parece distante.

Ao chegarmos ao Evangelho (Lucas 4,1-13), encontramos Jesus em Seu momento mais fraco – quarenta dias sem comida, isolado, vulnerável. O Sitz im Leben desse momento é o deserto, um lugar de provação, purificação e decisão.

A primeira tentação do diabo parece inofensiva: transformar pedras em pão. Qual o problema em saciar a fome? O atalho aqui é tomar o controle em vez de confiar que Deus proverá no Seu tempo.

A segunda tentação, no entanto, é mais perigosa. O diabo mostra a Jesus “todos os reinos do mundo” (πᾶσαι αἱ βασιλεῖαι τῆς οἰκουμένης, pasai hai basileiai tēs oikoumenēs) – o termo “oikoumenē” (οἰκουμένη) era comumente usado para descrever o mundo habitado sob o Império Romano. Isso não era uma oferta genérica de poder, mas sim o Império Romano em si – a maior força mundial da época. O diabo essencialmente diz: “Você quer governar? Eu posso te dar o Império Romano: sem sofrimento, sem cruz. Apenas se curve uma vez, e é seu.” Isso foi um desafio direto à missão do Messias. Os judeus esperavam que o Messias derrubasse o Império Romano e assumisse o poder político. Satanás oferece a Jesus uma coroa sem a crucificação, um reino sem sacrifício, autoridade imediata sem a dor da cruz. Esta é a teologia do atalho, onde o Cristianismo é reduzido a poder, prosperidade e influência, em vez de sacrifício, amor e resistência. Mas Jesus rejeita esse caminho. Ele escolhe a cruz em vez do caminho fácil para o domínio.

Depois de falhar em seduzir Jesus com satisfação física (pão) e poder mundano (Império Romano sem a cruz), o diabo parte para a tentação final e mais enganosa: “Se você é o Filho de Deus, jogue-se daqui para baixo, pois está escrito: Ele dará ordens aos seus anjos a seu respeito, para que o guardem, e eles o sustentarão nas mãos, para que você não tropece em alguma pedra.” O Sitz im Leben desta tentação é Jerusalém, onde o Templo era o centro da identidade religiosa e da expectativa messiânica. De acordo com algumas tradições judaicas, esperava-se que o Messias aparecesse milagrosamente no Templo. O diabo usa essa expectativa contra Jesus, sugerindo que Ele se jogue para que os anjos o salvem diante da multidão – garantindo assim o reconhecimento imediato como Messias.

Mas aqui está a grande armadilha: Satanás está usando as Escrituras para tentar Jesus. Ele cita o Salmo 91, que fala sobre a proteção de Deus, sugerindo que Jesus deveria forçar a mão de Deus a agir. Mas Jesus enxerga a mentira por trás disso. A verdadeira fé não testa a Deus. Ela confia Nele. Ele responde: “Foi dito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus'” (Lucas 4,12, citando Deuteronômio 6,16). É aqui que a terceira tentação se conecta totalmente ao tema dos “atalhos”. O diabo quer que Jesus ignore o caminho do sofrimento e da rejeição e tome uma rota mais fácil, onde a fé seria provada pelo espetáculo, e não pela obediência. Mas Jesus recusa-se a buscar validação barata ou a manipular Deus em benefício próprio.

Além disso, São Paulo na Segunda Leitura de hoje (Romanos 10:8-13) revela outra dimensão dessa tentação. Ele nos lembra que a salvação vem ao confessarmos Jesus como Senhor, não apenas como um título, mas como um modo de vida. O termo grego “Kyrios” (Κύριος, Senhor) era usado para os imperadores romanos e significava autoridade suprema. Dizer que Jesus é Senhor significava rejeitar César como senhor – ou seja, rejeitar o poder político como o salvador definitivo. Esta foi a mesma escolha que Jesus fez no deserto. Ele recusou o Império como um atalho e escolheu a cruz. Mas nós estamos dispostos a fazer o mesmo?

Queridos irmãos e irmãs em Cristo, as maiores tentações de hoje não são pecados gritantes, mas versões falsas das promessas de Deus. O diabo ainda oferece atalhos: sucesso rápido em troca de compromisso moral, fé sem sofrimento, bênçãos sem obediência. Isso é visto em pregações da teologia da prosperidade, no relativismo moral, e em cristãos que buscam influência ao invés de integridade. Como Jesus, devemos nos perguntar: Quero o Reino agora ou confio no tempo de Deus? Estou escolhendo o conforto em vez do chamado? Estou pegando o caminho mais fácil?

A Quaresma é um tempo para examinar nossos próprios atalhos. Exigimos resultados imediatos na oração? Comprometemos nossos valores por dinheiro? Buscamos aprovação em vez da verdade? A resposta de Jesus é o nosso modelo: Não aos atalhos! Sim à cruz! Pois, no fim, o verdadeiro Reino não é conquistado por barganhas com o diabo, mas pela fidelidade, pelo sofrimento e pela confiança na poderosa mão de Deus.

Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)


Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
📧 nozickcjoe@gmail.com / fadacjay@gmail.com


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Chinaka Justin Mbaeri

A staunch Roman Catholic and an Apologist of the Christian faith. More about him here.

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