MAS DEUS REALMENTE CASTIGA AS PESSOAS?
Primeira Leitura: Deuteronômio 30,15-20
Salmo Responsorial: Sl 1:1-4,6
Evangelho: Lucas 9:22-25
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Uma das reações humanas mais comuns diante da injustiça é a expectativa de um castigo imediato. Seja em conversas casuais, discussões acaloradas ou momentos de profunda mágoa, muitas pessoas expressam sua indignação com frases como “Aqui se faz, aqui se paga” ou “Deus tarda, mas não falha”, esperando que a justiça divina se cumpra rapidamente. No entanto, quando percebem que Deus parece não agir de imediato, alguns recorrem a outras crenças populares ou forças espirituais. No Brasil, isso se manifesta, por exemplo, na evocação de entidades do Candomblé e da Umbanda, como Exu ou Zé Pilintra, em expressões do tipo “Exu que te carregue” ou “Zé Pilintra vai te cobrar”, na tentativa de acelerar a retribuição. Essa mudança reflete a frustração humana com a demora da justiça divina e o desejo de ver os malfeitores sofrerem sem demora. Mas será que Deus realmente pune dessa forma? Será que o castigo divino é instantâneo, ou muitas vezes são as próprias escolhas humanas que trazem as consequências de seus atos?
Essa é precisamente a realidade que Moisés apresenta aos israelitas em Deuteronômio 30:15-20. Ele não descreve Deus como um vingador impiedoso que destrói os pecadores no momento em que erram, mas como Aquele que coloca diante de Seu povo dois caminhos claros: de um lado, a vida e o bem; do outro, a morte e o mal. O termo hebraico “רָעָה” (ra’ah), traduzido como “mal” ou “calamidade”, nem sempre implica um castigo ativo de Deus, mas sim as consequências desastrosas que naturalmente seguem a desobediência. Na mentalidade do antigo Oriente Próximo, não havia uma separação rígida entre a ação divina e as consequências naturais. Assim, quando Moisés diz ao povo que se afastar de Deus levará à destruição, ele não está necessariamente afirmando que Deus os atingirá diretamente, mas que a própria rebeldia deles os levará à ruína. Essa perspectiva desafia o desejo humano por retribuição instantânea – a justiça de Deus opera em um nível mais profundo, respeitando a liberdade humana e a ordem moral do universo.
O Salmo Responsorial (Sl 1) reforça essa dinâmica de escolhas e consequências. Os justos, aqueles que se deleitam na lei do Senhor, são comparados a árvores plantadas junto a ribeiros de águas, florescendo no tempo certo. Os ímpios, por outro lado, são descritos como “כַּמֹּץ” (kammōṣ) – palha que o vento dispersa. A imagem é marcante: a palha não é destruída ativamente por uma força externa; ela é naturalmente leve, sem raízes e instável, tornando-se suscetível ao vento. Isso reflete a compreensão bíblica de que o castigo divino muitas vezes não é um ato arbitrário de ira, mas o resultado inevitável de uma vida desconectada de Deus. Os ímpios, por sua própria natureza, tornam-se como a palha – frágeis, sem direção e, por fim, dispersos.
No Evangelho de Lucas 9:22-25, Jesus aprofunda esse entendimento ao mudar o foco das consequências externas para a transformação interna. Ele fala sobre seu próprio sofrimento, morte e ressurreição iminentes, destacando que o verdadeiro discipulado exige renúncia e disposição para carregar a cruz. A frase-chave, “Quem quiser salvar a sua vida a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa a salvará”, introduz um paradoxo que desafia o pensamento humano convencional. O termo grego ψυχή (psychē), traduzido como “vida” ou “alma”, significa a essência mais profunda do ser humano. Jesus não está falando apenas da vida física, mas do âmago da existência humana. Em outras palavras, aquele que se apega desesperadamente à segurança mundana, ao prazer ou à autopreservação, em detrimento de seguir Cristo, acabará perdendo o que realmente importa.
O “Sitz im Leben” (contexto histórico e social) desta passagem é crucial para compreender suas implicações. Jesus pronuncia essas palavras num ambiente em que seus seguidores esperavam um Messias que trouxesse libertação política e um julgamento imediato sobre os inimigos de Israel. A ideia de que o próprio Messias sofreria parecia inconcebível. Ele desafia seus ouvintes a repensar a justiça – não como uma vingança instantânea, mas como um processo que leva a consequências eternas. Isso fala diretamente à tendência humana moderna de buscar vingança ou exigir justiça imediata. A justiça de Deus, como revelada em Cristo, não consiste em eliminar os inimigos a pedido, mas em um processo redentor que convida os pecadores ao arrependimento, ao mesmo tempo em que os responsabiliza por suas escolhas.
Na prática, isso exige uma mudança radical na forma como percebemos o castigo divino. Muitas pessoas abandonam a fé porque veem os perversos prosperarem enquanto os justos sofrem – para elas, Deus não age, e por isso recorrem ao paganismo consciente ou inconscientemente. Perguntam-se: “Se Deus é justo, por que Ele não age?” Mas as Escrituras nos ensinam que a justiça divina é frequentemente lenta, não porque Deus seja indiferente, mas porque Ele é misericordioso. 2 Pedro 3:9 nos lembra que Deus é “paciente, não querendo que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento.” Isso significa que o atraso no castigo visível é, na verdade, uma oportunidade para a conversão. Em vez de amaldiçoar os outros e exigir justiça imediata, devemos reconhecer que o tempo de Deus é diferente do nosso. Ele está menos preocupado com a retribuição instantânea e mais focado na salvação eterna.
Muitos dos desafios que as pessoas enfrentam não são castigos de Deus, mas as consequências das escolhas feitas – sejam elas pessoais, sociais ou geracionais. Uma pessoa que adota hábitos destrutivos não pode culpar Deus quando sua saúde se deteriora. Uma sociedade que abandona os valores morais não pode se surpreender quando o caos e o sofrimento surgem. Isso não se trata de Deus infligir sofrimento, mas da realidade de que o mundo colhe aquilo que planta.
Queridos irmãos e irmãs, a Quaresma nos convida à renúncia como um meio de evitar a ruína espiritual. O chamado de Jesus para carregarmos nossa cruz não significa suportar sofrimentos à toa, mas sim alinhar nossa vida à vontade de Deus, mesmo quando isso é difícil. Muitas vezes, o que percebemos como castigo é, na verdade, uma oportunidade de purificação. As cruzes que carregamos – sejam lutas, perdas ou sacrifícios – podem levar a um profundo renascimento espiritual, se aceitas com fé. O desafio é mudar nossa mentalidade: em vez de perguntar “Por que Deus está me castigando?”, devemos perguntar “O que Deus está me ensinando por meio disso?” No fim, o verdadeiro castigo não é um raio vindo do céu, mas a perda da alma; e a verdadeira recompensa não é o sucesso terreno, mas a vida eterna em Cristo.
Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)
Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
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