No final de nossas vidas, Deus não perguntará: ‘Você deixou de comer carne ou jejuou por 40 dias?’ Ele perguntará: ‘Você amou? Você serviu? Você ajudou os pobres?’
Primeira Leitura: Levítico 19,1-2.11-18
Salmo Responsorial: Salmo 18(19),8-10.15
Evangelho: Mateus 25,31-46
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Para muitas pessoas, a Quaresma se resume a regras. Trata-se de jejum, abstinência de carne às sextas-feiras e práticas de renúncia. Muitos planejam minuciosamente seus sacrifícios – alguns deixam de comer chocolate, usar redes sociais ou beber álcool, enquanto outros se comprometem a rezar mais, reduzir atividades sociais ou frequentar a Missa diária. Seguem as obrigações quaresmais com rigor, acreditando que sua observância os tornará santos aos olhos de Deus. No entanto, algumas dessas mesmas pessoas guardam rancor, exploram os outros, maltratam seus funcionários, ignoram o sofrimento ao redor e se recusam a ajudar os pobres. Rezam o terço diariamente, mas falam mal do próximo; participam de todos os eventos da Igreja, mas não perdoam. Para elas, a fé está centrada em rituais, não em relacionamentos.
A Quaresma, para essas pessoas, é externa – uma lista de obrigações religiosas. Mas e se estivermos entendendo tudo errado? E se, no final da vida, Deus não nos perguntar se deixamos de comer carne, mas se nos doamos? E se, em vez de perguntar se jejuamos por 40 dias, Ele perguntar se alimentamos os famintos? E se Deus não estiver impressionado com o quanto nos privamos, mas com o quanto amamos?
Essa questão está no centro das leituras de hoje. A Primeira Leitura (Levítico 19,1-2.11-18) estabelece a base da verdadeira santidade. Deus ordena a Moisés que diga ao povo: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). Mas essa santidade não se resume a rituais religiosos ou observâncias externas – trata-se de como tratamos os outros. A passagem lista formas concretas de viver essa santidade: não roubar, não mentir, não enganar o próximo, não explorar os trabalhadores, não guardar ódio no coração, amar o próximo como a si mesmo (Lv 19,11-18). O Sitz im Leben (contexto histórico) dessa passagem é o povo de Israel recém-libertado do Egito. Eles haviam vivido sob opressão e, agora, como povo escolhido de Deus, eram chamados a ser diferentes das nações ao redor. A santidade não se resumia a seguir rituais do templo, mas exigia justiça, honestidade e amor. A palavra hebraica חֶסֶד (ḥésed), frequentemente traduzida como “misericórdia” ou “amor fiel”, está presente nesse mandamento. Refere-se a um amor de aliança, um amor que vai além da obrigação. Deus chama seu povo a viver o “ḥésed,” não apenas por meio da oração e do sacrifício, mas através do amor concreto e ativo pelos outros. A mensagem é clara: não se pode ser santo e injusto ao mesmo tempo.
O Salmo responsorial 18(19) aprofunda esse ensinamento ao declarar: “A lei do Senhor é perfeita, conforto para a alma” (Sl 18,8). O salmo não fala de normas religiosas rígidas, mas de uma lei que renova e transforma. O termo hebraico תוֹרָה (Torah) não significa apenas “lei” no sentido jurídico; refere-se a um ensinamento divino que guia as pessoas para a retidão e a justiça. O salmista louva a palavra de Deus não como um fardo, mas como um dom que permite viver em harmonia com Deus e com os outros. A lei não se trata de restrições, mas de formar um coração justo e compassivo. Essa é a lei que Jesus usará para julgar as nações.
No Evangelho (Mateus 25,31-46), Jesus deixa claro o que realmente importa. No juízo final, as pessoas não serão separadas com base no quanto jejuaram, em quantas regras religiosas seguiram ou na frequência com que rezaram. Serão separadas por um único critério: Você amou? Você serviu? Você cuidou dos pobres? Jesus diz aos justos: “Eu estava com fome e me destes de comer; estava com sede e me destes de beber; era estrangeiro e me recebestes” (Mt 25,35).
O “Sitz im Leben” dessa passagem mostra Jesus preparando seus discípulos para a chegada do Reino. Muitos judeus esperavam que o Messias trouxesse um reino político, mas Jesus redefine sua missão. O verdadeiro Reino não se constrói pelo poder ou pela conquista, mas pelo serviço e pelo amor. A palavra grega διάκονος (diakonos), que significa “servo” ou “ministro”, está no centro desse ensinamento. Os justos não são recompensados por suas práticas religiosas, mas por sua diakonia – o serviço ativo aos necessitados. Jesus se identifica diretamente com os pobres, os doentes, os famintos e os presos. Servi-los é servir a Ele; ignorá-los é rejeitá-Lo. Por isso, os condenados ficam chocados quando Ele lhes diz: “Todas as vezes que deixastes de fazer isso a um desses pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25,45).
Essa passagem desafia radicalmente a maneira como muitas pessoas vivem sua fé. Alguns acreditam que o Cristianismo trata apenas da moralidade pessoal – evitar pecados como beber, falar palavrões ou ter uma vida sexual desregrada. Outros pensam que se resume à piedade religiosa – rezar, jejuar e frequentar a igreja. Mas Jesus muda essa lógica: Fé sem amor é inútil. Religião sem justiça é hipocrisia. Não seremos julgados pelo que evitamos, mas pelo que fizemos. O maior fracasso não é quebrar regras religiosas, mas deixar de amar.
O que isso significa para nós na Quaresma? Primeiro, que a Quaresma não se trata apenas do que deixamos de fazer, mas de quem ajudamos. Em vez de jejuar apenas de comida, que tal jejuarmos da indiferença? E se, em vez de renunciar ao chocolate e ao café, renunciássemos ao egoísmo, à raiva e ao ódio? E se medíssemos nossa santidade não pelo quanto nos privamos, mas pelo quanto ajudamos os outros?
Segundo, a Quaresma não é apenas pessoal – é comunitária. Muitas pessoas tratam a religião como uma busca individual pela santidade, focando em sua relação com Deus, mas ignorando sua relação com os outros. Mas Jesus é claro: encontramos Ele nos famintos, nos doentes e nos presos. Se nossas práticas quaresmais não nos tornam mais justos, mais compassivos e mais generosos, elas são inúteis.
No final de nossas vidas, Deus não perguntará se seguimos as regras alimentares ou quantos terços rezamos. Ele perguntará: Você amou? Você serviu? Você cuidou dos pequeninos? Se não pudermos responder “sim”, então nenhum jejum, nenhuma oração e nenhuma prática religiosa rigorosa terão valor. Nesta Quaresma, não nos concentremos em rituais vazios, mas em uma verdadeira conversão – uma conversão do coração que nos leva à justiça, à misericórdia e ao amor.
Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)
Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
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