VOZ DO LOGOS (2): REFLEXÃO/HOMILIA PARA A SEGUNDA-FEIRA DA 6ª SEMANA DO TEMPO COMUM, ANO I

O SANGUE QUE FALA MAIS ALTO QUE AS PALAVRAS.

Primeira Leitura: Gênesis 4,1-15.25
Salmo Responsorial: Salmo 49(50),1.8.16-17.20-21
Evangelho: Marcos 8,11-13
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O sangue sempre teve um significado profundo em todas as culturas e tradições religiosas, simbolizando vida, sacrifício, aliança, justiça e redenção. Ele é um sinal universal de vitalidade, a força que sustenta cada ser vivo. Desde os tempos antigos, o sangue foi reconhecido como a essência da vida, e o seu derramamento, seja por violência ou em rituais, foi visto como algo sagrado. No pensamento bíblico, o sangue não é apenas uma necessidade biológica, mas uma realidade espiritual que representa a relação entre a humanidade e Deus. O sangue fala, ele carrega uma mensagem, seja de pecado, sacrifício ou salvação.

Na tradição judaica, o termo דָּם (Dam) significa sangue e está profundamente ligado à aliança entre Deus e Seu povo. O Levítico 17,11 estabelece um princípio fundamental da teologia judaica: “Porque a vida da carne está no sangue, e eu vo-lo dei para fazer expiação por vossas almas sobre o altar; pois é o sangue que faz expiação pela vida.” O sangue não é apenas um fluido corporal, mas o portador da vida, pertencendo exclusivamente a Deus, que tem autoridade sobre a vida e a morte. Por isso, o derramamento de sangue, seja em assassinato ou sacrifício, era sempre tratado com extrema seriedade. O povo judeu era proibido de consumir sangue, pois ele era sagrado, reservado para propósitos divinos. Derramar sangue inocente era um crime que clamava por justiça, como vemos na história de Caim e Abel na liturgia de hoje.

A primeira leitura, retirada de Gênesis 4,1-15.25, narra um dos episódios mais trágicos da Escritura: o primeiro assassinato da história humana. Dominado pelo ciúme, Caim se levanta e mata seu irmão Abel, cometendo o primeiro ato de derramamento de sangue inocente. Quando Deus o confronta, Caim finge ignorância: “Sou eu o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). Mas a resposta de Deus é aterrorizante: “O que fizeste? O sangue de teu irmão clama da terra para mim!” (Gn 4,10). Aqui, o sangue não é silencioso. Ele fala, testemunha e exige justiça. O sangue de Abel torna-se uma acusação contra Caim, clamando a Deus para agir. Esse momento estabelece um princípio teológico—o sangue derramado nunca é esquecido por Deus, ele clama por justiça.

O derramamento do sangue de Abel prefigura o derramamento do sangue de Cristo, que se tornará o maior ato de justiça e misericórdia da história. A Carta aos Hebreus faz essa conexão explícita: “Vós vos aproximastes… de Jesus, mediador da nova aliança, e do sangue da aspersão que fala melhor do que o de Abel.” (Hb 12,24). O sangue de Abel clamava por vingança; o sangue de Cristo clama por redenção. Abel foi a vítima inocente do ciúme, mas Cristo, sendo inocente, derramou Seu sangue voluntariamente para a salvação do mundo. Esse cumprimento transforma o significado do sangue de um sinal de violência para o sinal supremo de amor e entrega.

Essa compreensão teológica do sangue ajuda a explicar a passagem do Evangelho de Marcos 8,11-13, onde os fariseus pedem um sinal a Jesus. O pedido deles não era uma verdadeira expressão de fé, mas um teste, uma tentativa de forçá-lo a provar-se. O termo grego “σημεῖον” (sēmeion) é usado aqui, significando “sinal” ou “milagre”. Ao longo dos Evangelhos, os fariseus buscam sinais como prova de autoridade divina, mas constantemente ignoram o maior sinal diante deles—o próprio Jesus. Em Marcos 8, Jesus se recusa a fazer um sinal para eles, suspirando profundamente e dizendo: “Por que esta geração pede um sinal? Em verdade vos digo, nenhum sinal será dado a esta geração.” (Mc 8,12). Essa recusa é significativa porque revela a cegueira espiritual deles. Eles exigem uma prova externa, mas falham em reconhecer que o maior sinal—Seu próprio sangue sacrificial—logo seria derramado para a redenção da humanidade.

A exigência dos fariseus por um sinal é um reflexo da recusa de Caim em aceitar a responsabilidade pelo sangue de Abel. Assim como Caim ignorou o clamor do sangue de seu irmão, os fariseus ignoraram a voz do sangue de Cristo, que em breve seria derramado pelos pecados da humanidade. Eles se recusam a reconhecer que o Messias estava diante deles, assim como Caim se recusou a admitir seu crime diante de Deus. A recusa de Jesus em fazer um sinal não é um ato de desafio, mas uma afirmação de que a verdadeira fé não vem de espetáculos, mas de um coração que reconhece a presença de Deus com humildade e arrependimento.

O significado teológico dessa passagem é profundo. Jesus sabia que nenhum sinal milagroso seria suficiente para aqueles cujos corações estavam endurecidos. O verdadeiro sēmeion não estava em milagres externos, mas na cruz, onde Seu sangue seria derramado como a revelação definitiva do amor de Deus. Assim como o sangue de Abel foi um testemunho contra Caim, o sangue de Cristo seria um testemunho contra aqueles que o rejeitaram. No entanto, ao contrário do sangue de Abel, que clamava por vingança, o sangue de Cristo clamaria por misericórdia, oferecendo salvação a todos que o aceitassem.

Dessas leituras, surgem várias lições. Primeiro, o sangue tem uma voz, seja o sangue dos inocentes clamando por justiça ou o sangue de Cristo falando de redenção. Não podemos ignorar as consequências da injustiça e, como Caim, não devemos fugir de nossas responsabilidades para com nossos irmãos e irmãs. Segundo, a fé não depende de sinais externos, mas de um coração que reconhece a presença de Deus na vida cotidiana. Os fariseus queriam provas, mas a verdadeira prova do amor de Deus estava diante deles, e eles se recusaram a vê-la. Terceiro, a cruz é o sinal definitivo—o lugar onde a justiça divina e a misericórdia se encontram. O sangue de Jesus, derramado voluntariamente, é o maior e mais definitivo sinal de todos, um sinal que não pode ser exigido ou manipulado, mas apenas aceito pela fé.

Ao refletirmos sobre essas passagens, somos convidados a nos perguntar: reconhecemos hoje a voz do sangue de Cristo falando conosco na Sagrada Eucaristia, o memorial de Sua morte redentora e ressurreição? Nós, como Caim, recusamos a admitir nossos pecados ou permitimos que Seu sangue nos purifique e nos transforme? Somos como os fariseus que exigem sinais e milagres, ignorando a Sagrada Eucaristia (o verdadeiro sinal)? Ou abraçamos a cruz como a revelação suprema do amor de Deus? A escolha está diante de nós, assim como estava diante de Caim, dos fariseus e de todos que encontraram Cristo. Que possamos escolher ouvir a voz do Seu sangue, que não fala de vingança, mas de misericórdia e salvação eterna.

“Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não endureçais os vossos corações!” (Sl 95,7)


Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
📧 nozickcjoe@gmail.com / fadacjay@gmail.com


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Chinaka Justin Mbaeri

A staunch Roman Catholic and an Apologist of the Christian faith. More about him here.

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