Você Lê a Bíblia, Mas a Bíblia Lê Você?
Primeira Leitura: Isaías 55,10-11
Salmo Responsorial: Salmo 33(34),4-7.16-19
Evangelho: Mateus 6,7-15
________________________________________
Para muitos cristãos, ler a Bíblia é um hábito diário. Eles abrem as Escrituras, seguem planos de leitura e até memorizam versículos e os citam com facilidade. Alguns destacam passagens, fazem anotações e compartilham reflexões com amigos. A Bíblia está na mesa de cabeceira, aparece em suas postagens nas redes sociais e preenche suas orações e conversas com conhecidos. No entanto, apesar de tudo isso, algo essencial pode estar faltando. Uma coisa é ler a Bíblia, mas será que a Bíblia lê você? Ela te desafia? Ela te incomoda? Ela te transforma? Muitos abordam as Escrituras como uma fonte de informação, mas não de formação. Tratam-nas como uma enciclopédia de conhecimento espiritual, buscando respostas e doutrinas, mas não permitem que a Palavra molde seus corações e ações. O perigo é que podemos conhecer a Bíblia sem vivê-la, citá-la sem encarná-la e pregá-la sem praticá-la.
Essa é a mensagem das leituras de hoje. A Primeira Leitura (Isaías 55,10-11) nos lembra que a Palavra de Deus não é apenas tinta no papel – ela é viva e eficaz. “Assim como a chuva e a neve descem do céu e para lá não voltam sem ter irrigado a terra… assim acontece com a palavra que sai da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará tudo o que for de minha vontade” (Is 55,10-11). A Palavra de Deus foi feita para agir em nós, criar raízes e dar frutos. Mas se tratarmos a Bíblia apenas como material de leitura e não como uma força divina capaz de nos mudar, então seremos como um solo seco que se recusa a absorver a chuva. Na tradição bíblica, o termo hebraico דָּבָר (dāḇār), muitas vezes traduzido como “palavra”, também significa ação. A Palavra de Deus não é apenas pronunciada – ela realiza algo. Se verdadeiramente permitirmos que a Bíblia nos leia, ela exporá nossos pecados, purificará nossas intenções e nos chamará à conversão. Mas se apenas a folhearmos como parte de uma rotina religiosa, resistiremos ao seu poder.
O Salmo 33(34) reforça essa mensagem ao mostrar como a Palavra de Deus tem consequências reais na vida: “Busquei o Senhor, e Ele me atendeu; livrou-me de todos os temores” (Sl 33,5). O salmista não apenas escuta – ele age, buscando o Senhor, confiando n’Ele e experimentando a salvação. Essa é a diferença entre apenas ler as Escrituras e ser lido por elas. Não se trata de quantos capítulos lemos, mas de quanto nossa vida muda.
O Evangelho (Mateus 6,7-15) nos leva ainda mais fundo nessa reflexão. Jesus ensina seus discípulos a rezar, apresentando o Pai Nosso, uma das orações mais conhecidas do cristianismo. Muitas pessoas recitam essa oração diariamente, mas Jesus alerta: “Quando orardes, não useis muitas palavras, como fazem os pagãos” (Mt 6,7). Ele não está condenando a repetição – afinal, os Salmos frequentemente repetem orações, mas Ele adverte contra a repetição vazia, quando as palavras são ditas sem reflexão ou sinceridade. O contexto histórico desse trecho mostra que Jesus estava corrigindo a abordagem mecânica da oração que alguns grupos religiosos praticavam na época. No mundo antigo, os pagãos acreditavam que orações longas e elaboradas impressionariam seus deuses. Jesus contrasta essa visão ao ensinar que a oração não se trata de palavras, mas de relacionamento.
E aqui está o verdadeiro desafio: muitos cristãos rezam o Pai Nosso diariamente, mas vivem em contradição com suas palavras. Dizem: “Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”, mas guardam rancor. Rezam: “Seja feita a vossa vontade”, mas resistem à vontade de Deus em suas vidas. Recitam: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”, mas não confiam na providência divina. Eis o verdadeiro teste: será que apenas dizemos as palavras, ou será que as palavras nos moldam?
A palavra grega ὑποκριτής (hypokritēs), de onde vem o termo “hipócrita”, originalmente se referia a atores—pessoas que desempenhavam papéis no teatro. Se lemos a Bíblia, mas não permitimos que ela nos leia, tornamo-nos atores religiosos, dizendo todas as falas corretas, mas vivendo uma realidade diferente. As Escrituras não foram feitas para serem interpretadas como um papel num palco, mas para serem vividas.
O que isso significa para nós na prática?
Primeiro, ler a Bíblia nunca deve ser apenas sobre terminar um capítulo, mas sobre permitir que o capítulo termine seu trabalho em nós. Em vez de correr pela leitura, devemos parar e perguntar: Como essa passagem desafia meu coração? O que Deus está me chamando a mudar? Uma pequena passagem profundamente aplicada é mais poderosa do que uma grande passagem lida apressadamente.
Segundo, não basta ler a Palavra – é preciso obedecê-la. Tiago 1,22 nos adverte: “Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes, enganando-vos a vós mesmos.” Muitas pessoas apreciam estudos bíblicos, sermões e livros religiosos, mas lutam para colocar em prática o que aprendem. O verdadeiro teste de quem lê a Bíblia não está no quanto conhece, mas no quanto pratica.
Terceiro, a oração não deve ser feita de palavras vazias, mas de conversa sincera. O Pai Nosso não é um roteiro a ser recitado sem reflexão—é um modelo de comunhão verdadeira, profunda e sincera com Deus. Se o rezamos diariamente, mas não permitimos que ele leia nosso coração, perdemos seu poder.
No final de nossas vidas, Deus não perguntará quantos versículos memorizamos ou quantos debates teológicos vencemos. Ele perguntará: Minha palavra transformou você? Ela te incomodou? Ela te levou a amar mais, perdoar mais, servir mais? A Bíblia não é apenas um livro a ser lido—ela é um espelho que revela quem realmente somos. A questão é: Quando olhamos para esse espelho, mudamos ou simplesmente desviamos o olhar e seguimos iguais?
Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)
Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
📧 nozickcjoe@gmail.com / fadacjay@gmail.com
Você já rezou o seu terço hoje?