VOZ DO LOGOS (25): REFLEXÃO/HOMILIA PARA TERÇA-FEIRA DA SEGUNDA SEMANA DA QUARESMA, ANO 1

Justiça como Opressão?

Primeira Leitura: Isaías 1,10.16-20
Salmo Responsorial: Sl 49(50),8-9.16-17.21.23
Evangelho: Mateus 23,1-12
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A justiça deve ser uma fonte de ordem e equidade, um meio de sustentar a retidão e garantir o bem-estar de todos. No entanto, a experiência tem mostrado que a justiça, quando colocada nas mãos erradas, pode se tornar uma arma de opressão, em vez de um caminho para a verdadeira retidão. Governos, líderes religiosos e até pessoas comuns frequentemente usam a justiça não para libertar, mas para controlar, não para restaurar, mas para sobrecarregar. A questão de hoje é: quando a justiça deixa de ser justa? Quando ela se transforma em opressão sob o disfarce da moralidade?

A primeira leitura de hoje (Isaías 1,10.16-20) estabelece o cenário para esta reflexão. O profeta Isaías fala aos governantes de Judá, comparando-os às infames cidades de Sodoma e Gomorra – sinônimos de perversidade e castigo divino. Essa é uma comparação chocante, considerando que Isaías está se dirigindo a Israel, o povo escolhido de Deus. O “Sitz im Leben” (contexto histórico) desta passagem é o período em que Judá havia caído em profunda corrupção. Os líderes, em vez de sustentar a justiça, transformaram suas estruturas legais e religiosas em instrumentos de opressão. Realizavam elaborados sacrifícios religiosos, mas suas ações diárias contradiziam a própria justiça que alegavam defender. A repreensão do profeta não é contra o culto em si, mas contra a hipocrisia de uma justiça sem misericórdia. Ele conclama o povo a “lavar-se e purificar-se”, exortando-os a abandonar o legalismo vazio e, em vez disso, abraçar uma justiça que defende os fracos: “Buscai o direito, corrigi o opressor, fazei justiça ao órfão, defendei a viúva.” Nos tempos bíblicos, órfãos e viúvas simbolizavam os mais vulneráveis da sociedade. Esse apelo por justiça é radical porque obriga a distinguir entre justiça verdadeira e opressão sistêmica – a justiça que restaura em vez da justiça que sobrecarrega. A palavra hebraica “mishpat” (מִשְׁפָּט), que significa justiça ou julgamento, é fundamental aqui. Em seu sentido original, mishpat não se trata apenas de impor leis; trata-se de restaurar a ordem divina. No entanto, no tempo de Isaías, mishpat havia se pervertido – um sistema rígido e legalista que ignorava a misericórdia. Essa distorção da justiça reflete a tendência do mundo moderno de aplicar leis seletivamente, favorecendo os poderosos enquanto pune os fracos. Seja na política, nos tribunais ou até mesmo nas instituições religiosas, a justiça muitas vezes é utilizada não para curar, mas para ferir.

O Salmo Responsorial (Salmo 50,8-9.16bc-17.21.23) continua essa temática. Deus declara: “Não é pelos sacrifícios que te repreendo.” Ele não condena a prática religiosa em si, mas sim o abuso da religião para justificar a opressão. O salmo expõe a hipocrisia daqueles que “recitam os meus estatutos” mas “odeiam a disciplina.” Isso é uma crítica direta àqueles que usam a justiça como um meio para parecerem justos, enquanto secretamente se envolvem na corrupção. Esse mesmo padrão se repete hoje, quando líderes políticos, figuras religiosas e ativistas sociais alegam lutar por justiça, mas manipulam os sistemas para benefício próprio.

Jesus leva essa crítica ainda mais longe no Evangelho (Mateus 23,1-12). Falando à multidão e a seus discípulos, Ele faz uma de suas mais duras denúncias: “Os escribas e os fariseus sentaram-se na cadeira de Moisés.” Essa afirmação é tanto um reconhecimento de sua autoridade quanto uma condenação de seu comportamento. Os escribas e fariseus eram especialistas na Lei Mosaica, mas, em vez de usarem seu conhecimento para guiar o povo à santidade, transformaram a lei religiosa em uma arma para sua própria glória e controle. O “Sitz im Leben” dessa passagem é essencial. Jesus estava falando a uma audiência judaica que havia sido submetida tanto à ocupação romana quanto ao legalismo opressor dos fariseus. Os romanos governavam com aplicação brutal da lei, enquanto os fariseus, em vez de serem pastores do povo, adicionavam mais e mais fardos – mais regras, mais punições, mais restrições. Jesus expõe essa realidade quando diz: “Atam fardos pesados e insuportáveis e os põem nos ombros dos homens, mas eles mesmos não os querem mover sequer com um dedo.” Aqui, a justiça não é mais sobre equidade, mas sobre controle e opressão. O verbo grego “phortizó” (φορτίζω), que significa “carregar, sobrecarregar ou impor peso”, é central nesta passagem. Jesus acusa os fariseus de “carregar” o povo com obrigações que eles próprios se recusam a cumprir. Isso reflete realidades contemporâneas em que líderes impõem leis rigorosas, mas se isentam de suas consequências. Governos exigem sacrifícios dos cidadãos enquanto vivem no luxo. Líderes religiosos pregam moralidade, mas secretamente se entregam ao pecado. Ativistas sociais clamam por justiça, mas praticam opressão. Nesses casos, a justiça deixa de ser verdade e se torna manipulação.

As leituras de hoje nos desafiam a examinar como aplicamos a justiça em nossas próprias vidas. Somos como os fariseus, exigindo justiça dos outros, mas nos recusando a ser responsabilizados? Usamos a retidão como forma de julgar, envergonhar ou controlar os outros, em vez de curar e restaurar? Somos culpados de fazer da justiça uma ideologia, e não um caminho para a verdadeira santidade?

Queridos irmãos e irmãs, a justiça deve ser restaurativa, não punitiva – se nossa busca pela justiça busca apenas punir, e não curar, estamos praticando opressão, e não retidão. Além disso, legalismo não é santidade – seguir a lei não nos torna automaticamente justos. A santidade se encontra na misericórdia e na compaixão, não no cumprimento rígido de regras. Também devemos tomar cuidado com a hipocrisia. Antes de condenarmos os outros, devemos perguntar se somos culpados das mesmas falhas. A verdadeira justiça começa com a autoanálise e deve priorizar os vulneráveis – como o mandamento de Isaías de defender os órfãos e as viúvas, a verdadeira justiça eleva os fracos, em vez de sobrecarregá-los ainda mais.

Os líderes religiosos devem servir, não controlar. A advertência de Jesus contra os fariseus nos lembra que a liderança deve ser caracterizada pela humildade e pelo serviço, e não pelo poder e prestígio. O momento em que a justiça se torna impiedosa, transforma-se em opressão. Devemos sempre deixar espaço para redenção e perdão. Devemos perguntar: nossas leis e instituições estão realmente servindo o povo, ou se tornaram mecanismos de opressão? Jesus nos chama a desafiar sistemas injustos, não a segui-los cegamente. Os fariseus tornaram a vida das pessoas mais difícil, em vez de conduzi-las à liberdade. Se nossa ideia de justiça apenas gera medo e sobrecarga, então não vem de Deus. Devemos lembrar que Jesus é o modelo de liderança justa. Diferente dos fariseus, Jesus não impôs fardos pesados; Ele os carregou. A verdadeira justiça exige sacrifício próprio, não controle sobre os outros.

A mensagem de hoje é altamente controversa porque expõe a hipocrisia presente na política, na religião e até nos relacionamentos pessoais. Muitos afirmam lutar por justiça, mas quantos realmente aliviam os fardos dos outros? Se a justiça se torna apenas um instrumento de poder, então ela deixa de ser justa. A verdadeira retidão, como ensina Jesus, não está na opressão, mas na misericórdia, humildade e amor. Então, quando falamos de justiça, devemos nos perguntar: estamos buscando a retidão ou simplesmente usando a justiça como meio de controle e opressão?

Oxalá ouvísseis hoje a sua VOZ: não fecheis os vossos corações! (Sl 95,7)


Shalom!
© Pe. Chinaka Justin Mbaeri, OSJ
Seminário Padre Pedro Magnone, São Paulo, Brasil.
📧 nozickcjoe@gmail.com / fadacjay@gmail.com


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Chinaka Justin Mbaeri

A staunch Roman Catholic and an Apologist of the Christian faith. More about him here.

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